terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Eduardo Coutinho- O Mestre do Documentário




Passados dois dias de sua morte, o meio artístico brasileiro, sobretudo o cinematográfico, ainda custa a acreditar que Eduardo Coutinho se foi. E de maneira tão trágica (assassinado pelo próprio filho esquizofrênico, a facadas). Em plena atividade, o cineasta paulista, de 80 anos, já estava preparando um novo filme e devia estar contando os dias para o lançamento em DVD de sua obra-prima “Cabra Marcado Para Morrer”, em abril.

Verdadeiro divisor de águas quando o assunto é documentário brasileiro, “Cabra Marcado Para Morrer” tornou-se emblemático por conta de sua produção e finalização. Assim que voltou de Paris, em 1960, após estudar dois anos Cinema no Institut des Hautes Études Cinématographiques (Idhec), Coutinho fez trabalhos como assistente de direção no teatro e no cinema, trabalhando com Amir Haddad, Flávio Migliaccio e Leon Hirszman.

Participou do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes (UNE) que o convida a dirigir um projeto baseado nos poemas “O Rio”, “Morte e Vida Severina” e “O Cão Sem Plumas” de João Cabral de Melo Neto. O poeta, no entanto, dá para trás e não autoriza a adaptação. Coutinho que já estava em Pernambuco, a fim de documentar as condições da população pobre pelo país, conhece Elizabeth Teixeira, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira e decide realizar um doc-ficção com atuação dos camponeses.

O filme chamaria “Cabra Marcado Para Morrer” e abordaria o conflito entre camponeses e proprietários de terras (tão comum ainda hoje, no interior do país). As filmagens iniciadas em fevereiro de 1964, não duraram muito tempo, devido ao Golpe Militar deflagrado no final de março daquele ano. O saldo foi a interrupção do filme, equipamentos apreendidos, dispersão da equipe técnica e prisão de Coutinho e de Elizabeth, que depois de quatro meses presa, decide viver na clandestinidade.

Porém, o diretor consegue salvar uma parte do negativo filmado, que fica guardado por um tempo (ironia do destino), na casa de David Neves, cujo pai era general do Exército e, depois, na Cinemateca do MAM-RJ, sob o título de “A Rosa do Tempo”. No período de 10 anos, Eduardo Coutinho exercita seu talento múltiplo no cinema, na televisão, e na imprensa escrita (no Jornal do Brasil, trabalha durante quatro anos, sendo copidesque e crítico de cinema).

Somente em 1981, ele retornaria ao Nordeste para investigar o paradeiro dos principais atores de cabra “Marcado Para Morrer”. Agora, que a ditadura já dava sinais de falência, as filmagens deveriam ser retomadas. E foi. Coutinho e Elizabeth se reencontram e finalizam um diálogo interrompido há 17 anos. Entre 1982-1983, é a vez de Coutinho entrevistar Marinês, José Eudes e Marta, todos filhos de Elizabeth, e Cícero Anastácio, um dos atores da primeira versão.

O filme é concluído em 16 mm e ampliado, posteriormente, para 35 mm. Em 1984, “Cabra Marcado Para Morrer” estreia no Brasil e faz uma excelente carreira pelos festivais de cinema mundo afora. Não só a tenacidade do diretor em finalizar o projeto, quase 20 anos depois é louvável, como uma característica sua, iria se evidenciar nos projetos que se seguem até “O Fim e o Princípio” (2005): seu deslocamento em direção ao entrevistado.

Coutinho foi atrás de Elizabeth no interior nordestino, assim como foi ao encontro dos moradores do Morro D. Marta em “Santa Marta- Duas Semanas no Morro” (1987), da favela Vila Parque da Cidade para filmar “Santo Forte” (1999) e do Morro do Chapéu Mangueira para realiza “Babilônia 2000” (2001), dos moradores do “Edifício Master” (2002), dos metalúrgicos do ABC em “Peões” (2004) e dos nordestinos do sertão da Paraíba em “O Fim e o Princípio” (2005).

A partir de “Jogo de Cena” (2007) essa logística muda sobremaneira. As entrevistadas vão ao encontro de Coutinho, reúnem-se num teatro, mas não é só isso. Ao misturar anônimas com atrizes renomadas e outras, pouco famosas, Coutinho põe em dúvida todos os filmes documentários, desestabilizando a noção do sujeito.

E o que dizer de “Moscou” (2009) ? Em que Coutinho filma os ensaios da peça “As Três Irmãs” de Tchékov, interpretado pelo Grupo Galpão, sob a direção de Enrique Diaz. Mais do que nunca, o cineasta aqui, radicaliza com a questão de onde inicia-se a ficção e termina o documentário e vice-versa. A peça não seria encenada e as filmagens resultam em “Moscou”.

Ainda não tive a oportunidade de assistir aos filmes “Um Dia na Vida” (2010) e “As Canções” (2011), mas pelas críticas que conferi, fazem jus à produção de excelência do diretor. No ano passado, Coutinho foi o grande homenageado da 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Além de uma retrospectiva com seus filmes, a programação da Mostra contou com o lançamento do livro “Eduardo Coutinho” organizado por Milton Ohata e publicado pela Cosac Naify.

Agora, só nos resta ver e rever seu legado. Aos que não viram ainda “Cabra Marcado Para Morrer”, é bom correr para as lojas em abril, a fim de adquirir o DVD desse filme. Depois de assisti-lo, você terá vontade de conhecer a obra completa do diretor. O mais genial, criativo e ousado documentarista que o Brasil já teve.

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